4 dias de comboio entre Moscovo e Irkutsk: a vida sobre carris

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Depois de 4 dias a percorrer a admirável cidade de Moscovo, estava na hora de seguir viagem até Irkutsk, uma das mais importantes cidades da sibéria e o nosso ponto de partida para explorar o lago Baikal. Iam ser perto de 4 dias passados num comboio, por isso decidimos comprar bilhetes de 2ª classe. Assim, estaríamos num compartimento fechado com 4 camas, duas inferiores e duas superiores, em vez de estarmos num vagão aberto para 54 pessoas, como foi o caso da viagem entre São Petersburgo e Moscovo. Os bilhetes são um pouco mais caros, mas daria para descansar melhor.

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O comboio ia partir às 00h35. Quando soubemos o número da plataforma, procurámos a nossa carruagem e ficámos na fila que se começava a formar. Tal como em São Petersburgo, a senhora responsável pela carruagem (chamam-se provodnitsa, проводница), verificou os bilhetes e os passaportes, enquanto confirmava os nomes numa lista impressa que segurava na outra mão. Entrámos. Aquele pequeno compartimento ia ser a nossa casa durante os próximos 4 dias.

Corredor 2a classe Russia Transiberiano Mundo Indefinido

Transiberiano 2a classe interior 02 Mundo Indefinido

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Não estávamos sozinhos daquele espaço, um casal mais velho ia partilhar o compartimento connosco. Enchi-me de coragem e perguntei-lhes, enquanto segurava o livro da Lonely Planet com diversas frases russas, “Ты говоришь по-английски?” (Ty govorish’ po-angliyski?). Ou seja, “falam inglês?” É muito raro encontrar um russo que fale bem inglês, em particular fora das grandes cidades como Moscovo e São Petersburgo.

Apesar de estarmos a sair de Moscovo, a probabilidade de eles falarem era baixa, e o meu russo é extremamente limitado, mas tinha de tentar. O senhor respondeu-me “Yes”, com aquele sotaque a que estamos habituados a ver nos filmes americanos, onde os russos normalmente são os vilões. Ficámos a saber que iam apenas passar a noite no comboio, e que tinham ido a Moscovo por causa do trabalho do senhor.

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Já perto da 1h00 da manhã fomos dormir.  Puxei o colchão, abri o saco com os lençóis e a fronha da almofada e fiz a minha cama. Deitei-me. Pensei que ia adormecer quase instantaneamente, mas uma tosse irritante não me deixou dormir como deve ser. Nem a mim, nem aos meus companheiros de compartimento. A chuva que tinha apanhado em Moscovo estava a fazer das suas. Mal sabia eu que esta tosse seca me iria acompanhar grande parte da viagem.

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De manhã, os senhores foram embora, e entraram dois rapazes. Um deles passou o dia inteiro ao computador e ao telemóvel, sem ligar nenhuma a quem por ali se encontrava. O outro, Sasha de seu nome, queria comunicar connosco. Sasha não estava a viajar sozinho, mas ele e os seus companheiros não tinha conseguido ficar juntos num compartimento.

O inglês dele estava mais ou menos ao mesmo nível que o meu russo: sabia dizer pouco mais do que bom dia, por favor e obrigado. Mas ele estava determinado a fazer-se entender, queria conhecer estas pessoas estranhas que estavam a viajar no seu país. Pegou no meu livro com as frases em russo-inglês, e tentou ler. Corrigimos a sua pronúncia das palavras inglesas, e ele ensinou-nos algumas frases na sua língua materna. Lá fora, a paisagem ia passando por nós, ou nós por ela: florestas, montanhas, rios… A Rússia é um país vasto, com uma diversidade incrível.

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As horas foram passando, entre tentativas de ultrapassar a barreira linguística, observação da vida lá fora, e leituras sobre os locais onde o comboio ia parando. Kostroma, Neya, Sharya, Gostovskaya, Kirov… Estes são os nomes de algumas localidades por onde passámos e nas quais o comboio parou, por vezes durante apenas 1 minuto. Em muitas estações não dava tempo para sair, apenas podíamos observar da nossa janela.

Pessoas entravam e saiam, numa rotação constante. Já a minha tosse, essa, não queria ir embora. Sasha ofereceu-me um medicamento, que ainda hoje não sei o que era. Mas a tosse não parou… E assim se passou o primeiro dia no comboio, comigo a tossir e com a hospitalidade russa a mostrar o seu lado mais atencioso.

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O segundo dia seria marcado pelo senhor Mikhail, sem dúvida a pessoa que mais gostei de conhecer em viagem. Nos seus 50 e muitos anos, o senhor Mikhail estava a fazer o transiberiano clássico, indo de Moscovo até Vladivostok, e visitando as principais cidades pelo caminho. Reformado, foi arquitecto durante muitos anos, profissão que lhe deu algum dinheiro. Agora, andava a conhecer o seu país de uma ponta à outra. Tinha impresso os mapas das cidades que queria visitar, e assinalou a caneta alguns hotéis. Se não houvesse vaga num deles, iria para o seguinte. Com a tampa da caneta, verificava distâncias entre os diversos pontos de interesse que tinha marcado.

Segundo ele, viajar é muito fácil: “Very simple, hotel, one room please, no problem. One train ticket please, no problem”. Já esteve em vários países, incluindo Portugal. “Lisboa, magnífico! Mosteiro dos Jerónimos, magnífico! Guimarães, magnífico! Alcobaça, magnífico! Tomar, Convento de Cristo, magnífico! Azulejos, magnífico!” É tão bom quando alguém de fora nos diz estas coisas sobre o nosso país. Com apenas uma palavra – magnífico – o senhor Mikhail deixou-me de coração cheio.

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Foi durante o segundo dia que passámos a fronteira invisível entre a Europa e a Ásia, e entrámos oficialmente na sibéria. Entretanto o fuso horário mudou também: estávamos com mais 2 horas em relação a Moscovo. O senhor Mikhail tinha ido embora um pouco antes, foi explorar mais uma cidade da Rússia, munido com os seus mapas em papel. E assim ficámos sozinhos grande parte da noite.

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Quando acordei no terceiro dia, tínhamos novos companheiros de compartimento, um casal que não falou durante grande parte do trajecto. Mesmo sem grande comunicação verbal, ofereceram-nos comida, uma espécie de pastéis fritos feitos em casa. Sim, a minha experiência diz-me que os russos são extremamente hospitaleiros e acolhedores, mesmo que à primeira vista não pareçam.

O tempo foi passando, e ficámos com mais 4 horas em relação a Moscovo. A paisagem lá fora foi-se alterando, era um pouco mais árida do que o que tínhamos visto até então. Acabei por adormecer durante a tarde, as noites não eram fáceis. A tosse não me queria largar e não me deixava dormir uma noite completa.

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Quarto dia, mais 5 horas em relação a Moscovo. Uma senhora mais velha, com ar de avozinha amável, entrou no compartimento e ouviu-nos falar uma língua estranha. Falou connosco em russo, ao que eu lhe respondi “Я не понимаю русски” (Ya ne ponimayu russki), que é como quem diz “eu não percebo russo”.  Mas este pequeno pormenor não a fez desistir, ela queria falar connosco a todo o custo. Fez-me lembrar a senhora búlgara que, no comboio entre Sófia e Salónica durante o Interrail de 2015, continuava a falar em búlgaro mas mais devagar, como se a velocidade fizesse com que a entendêssemos. Não era bom se a velocidade fizesse com que percebêssemos o que nos dizem numa língua que não dominamos?

Entre russo e inglês, lá conseguimos dizer que éramos de Portugal e que íamos até Irkutsk. Ela ia regressar à sua terra natal, depois de uns dias passados com um casal amigo. Chamou a provodnitsa (a responsável pela carruagem) para ajudar na tradução e ficámos os 4 a conversar, entre um inglês primitivo da parte delas, e um russo do nosso lado que só servia para responder a perguntas de “da” e “niet” (sim e não, respectivamente).

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Algumas horas depois, estávamos a parar em Irkutsk. O comboio iria continuar viagem até Kabarovsk, mas nós tínhamos chegado ao nosso destino. A senhora, cujo nome infelizmente não me recordo, ia até Chita. Ao nos despedirmos, partilhou connosco uns doces que ela tinha trazido, e ofereceu-nos 4 pepinos bem pequeninos. Acho que, no geral, os russos são um pouco como os portugueses: levam farnel para todo o lado, e gostam de o partilhar com desconhecidos. Não é uma característica maravilhosa?

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