Naquele dia, tínhamos uma missão bem definida: percorrer uma das secções não restauradas¹ da Grande Muralha da China, até chegarmos a uma das secções melhores preservadas. Ia ser o dia praticamente todo a caminhar. Ainda antes das 7h00 já estávamos fora do nosso Peking Station Hostel. Munidos com água e farnel para o dia inteiro, assim como boné e protector solar, estávamos prontos para abraçar esta nova aventura.
¹ Não é propriamente legal percorrer partes não restauradas na Grande Muralha da China. Não são zonas abertas ao público. Se o decidires fazer, vai por tua própria conta e risco. Eu fi-lo, e tornaria a fazê-lo, mas não o aconselho a todas as pessoas.
A viagem começa no autocarro 916快
Ao chegar à estação de autocarros, tivemos a sorte de haver um 916快 que estava mesmo prestes a partir. Entrámos, perguntámos quanto era, e a senhora que fazia o controlo dos bilhetes disse 22¥ (preço para duas pessoas). O dinheiro era colocado num recipiente fechado, apenas com uma ranhura para se inserir as moedas. Naturalmente, não dava troco. Tínhamos levado moedas pequenas a contar com isso mesmo.
Ao ver-me aproximar do recipiente, o motorista disse-me que o preço era 30¥. Dois valores diferentes, dados por responsáveis do mesmo autocarro? Sim, por isso fui pelo preço mais baixo e coloquei apenas 22¥. Ninguém reclamou, mas a senhora e o motorista trocaram um olhar.
A viagem decorreu tranquilamente, durante cerca de 1 hora. A dada altura, numa das paragens, há muita gente que nos chama, que nos diz para sair. Chegaram mesmo a entrar no autocarro, a dizer que para a Muralha da China era por ali. Até a senhora dos bilhetes o diz.
São muito convincentes, e algumas pessoas acabaram por sair. O esquema é simples: se saíres, os táxis até à Muralha são mais caros, porque a distância é maior. Evidentemente, não saímos, mas fomos praticamente os únicos ocidentais a ficar. Íamos até à última paragem, como planeado.
Numa das estações anteriores, daria para apanhar outro autocarro que nos leva até mais perto da Muralha. No entanto, o primeiro é apenas às 11h30 da manhã. Não queríamos perder tanto tempo em viagem, pelo que já tínhamos tudo pensado.
De táxi até à aldeia Xizhazi (西栅子)
A nossa ideia era tentar encontrar um grupo que também quisesse ir para a Grande Muralha da China, para dividirmos um táxi. Encontrámos um casal de ocidentais, e perguntámos para onde queriam ir. Iam para a Muralha, mas para Mùtiányù (慕田峪).
Esta é uma secção muito popular, embora não tanto como Bādálǐng (八達嶺). Tinha visto fotografias em que a Muralha da China estava cheia, e onde era praticamente impossível andar livremente. Não queria que a minha experiência fosse assim, por isso o nosso destino era outro: Jiànkòu (箭扣). Iríamos fazer a rota sul e terminar em Mùtiányù, mas o começo não seria lá.
(+) Guia prático sobre as secções da Muralha da China
(+) Como fazer a caminhada de Jiànkòu até Mùtiányù
Um senhor aproximou-se de nós e perguntou “Mùtiányù??”. Quando dissemos “Jiànkòu”, mostrou-nos um preço na calculadora do telemóvel. Era hora de negociar. Conseguimos descer um pouco, mas o taxista manteve-se firme nos 100¥. A manhã avançava e não podíamos perder mais tempo. Aceitámos, mas ficou-me sempre a sensação de que conseguiríamos baixar o preço, havendo mais tempo para negociações. Ainda hoje acredito nisso.
O mais perto da Muralha que qualquer meio de transporte nos deixa, é a aldeia de Xizhazi (西栅子). Para entrar, é preciso pagar 20¥ por pessoa, por ser área protegida. O taxista pediu-nos 40¥, mas depois disse-nos para nos baixarmos. Fizemo-lo. Taxistas sozinhos não pagam para entrar. Ficou com os 40¥ para ele.
Não nos chateámos: quando nos baixámos sabíamos o que estava a acontecer. Ainda pensei se lhe dava o preço acordado ou o valor sem os 40¥. Mas como nos levou mais à frente do que tínhamos combinado, decidimos dar-lhe o valor total. Cerca de 18€ por quase 50 quilómetros, percorridos em perto de 1 hora.
A subida até à Torre Zhengbei (正北楼)
Após sairmos do táxi, vimos que havia dois caminhos. Era para a esquerda ou para a direita? Não fazíamos ideia. Até que vimos um senhor a trabalhar no campo.
A probabilidade dele falar inglês era baixa, mas eu tinha várias palavras em mandarim, incluindo Torre Zhengbei (正北楼). Nesta torre, conseguíamos ter acesso à Muralha. Ele só tinha de ler, e apontar a direcção.
Como o senhor estava ocupado com o trabalho, decidimos comer primeiro umas bolachas que tínhamos levado. Foi aí que a nossa salvação chegou.
Há agências que oferecem excursões em pequenos grupos, com guias locais que sabem o caminho. Um desses grupos estava a chegar. Terminámos de comer as bolachas, e fomos atrás deles. Foi a melhor decisão que tomámos.
Acredito que, se estivéssemos sozinhos, íamos acabar por conseguir chegar à torre. O meu companheiro de viagem não está tão certo disso. A verdade é que há duas bifurcações no caminho. Virando no local errado, iríamos perder tempo e teríamos de andar para trás e para a frente. Mas da próxima vez já sei: na primeira bifurcação vira-se à esquerda, na segunda vira-se à direita.
O caminho até à Torre Zhengbei não é fácil. Sempre a subir, há quem demore quase 2 horas. Também há quem o tenham feito em 30 minutos. Nós demorámos 1 hora, com paragens pelo caminho.
Sempre que o grupo parava, também o fazíamos, um pouco mais atrás. Foi a minha sorte. O percurso é íngreme e estava um dia quente. E embora adore caminhadas, e faça natação há muitos anos, não estava propriamente no auge do meu condicionamento físico.
Depois de muito subir no meio de árvores e rochas, suar como se não houvesse amanhã, e lutar com mosquitos persistentes, finalmente vimos de perto o que tínhamos vindo conhecer.
Ali estava ela, a Grande Muralha da China
Jiànkòu é uma secção da Grande Muralha da China que não está restaurada. Está num estado bastante selvagem, e foi isso que me atraiu em primeiro lugar. Tinha lido que, para conseguirmos subir para a Torre, havia escadas de madeira. São os habitantes locais que as colocam e cobram 5¥ pela utilização. No entanto, não se encontravam por ali. Tivemos de subir por um amontoado de pedras que alguém tinha colocado.
Subimos. Da minha boca, não saiu um som. É verdade que estava um pouco ofegante da subida, mas havia outra razão para o meu silêncio. A paisagem deixou-me, literalmente, sem palavras. Rapidamente me recompus, e um “conseguimos!” saiu disparado. Tínhamos chegado à Grande Muralha da China.
Quatro horas de caminhada nos separavam de Mùtiányù
Ali, senti-me como nunca me tinha sentido em nenhum outro lugar até então. A grandiosidade desta tão magnífica obra construída pelo Homem era amplificada pela paisagem envolvente. Senti-me realmente pequena. Ainda para mais estando ali, quase sozinha, quase só eu e a Grande Muralha da China.
Durante muito tempo, fui só eu e o meu companheiro de viagem. Não nos cruzámos com mais ninguém. Dois pares de pés portugueses, sozinhos, a percorrer algo construído durante a dinastia Ming, há quase 650 anos. É uma sensação que não dá para explicar por palavras. Tentei por várias vezes, e falhei. Ainda tenho muito Mundo para conhecer, mas sei que explorar a Grande Muralha da China desta forma foi das melhores experiências que alguma vez terei.
Durante muito tempo, percorremos a Muralha, tendo sempre grande cuidado onde colocávamos os pés. Quando digo que esta é uma zona bastante selvagem, não é por acaso. Muitos tijolos estão a cair, o chão é extremamente irregular, e há vegetação um pouco por todo o lado. Este ambiente dá-lhe um encanto muito especial.
A dada altura do percurso, podíamos escolher: ou seguíamos por um atalho pelo meio das árvores, ou subíamos e descíamos o Chifre de Boi (do inglês Ox Horn, 牛角边). Vale dizer que somos meio loucos, por isso obviamente que escolhemos a segunda opção. Tanto a subida como a descida são incrivelmente íngremes, e ao descer temos de nos agarrar nas laterais para não cair!
Daqui, são perto de 90 minutos de caminhada até Mùtiányù. À medida que íamos desbravando caminho, o percurso tornava-se mais fácil. As paredes da Muralha da China já não estavam a cair, o chão encontrava-se mais nivelado. Lentamente, deixávamos o lado bravio, para entrarmos numa reconstrução.
Mùtiányù, a parte restaurada da Muralha
Depois de saltarmos um pequeno muro, entramos oficialmente em Mùtiányù. Aqui, começamos logo a ver mais pessoas, assim como barraquinhas de vendedores. Cerca de 2,5 quilómetros desta secção foram totalmente restaurados em 1986. É uma experiência bem diferente da que tínhamos tido até então.
As paredes que aqui encontramos são uma réplica o mais próxima possível das fortificações de 1568, o que não deixa de ser impressionante. É uma reprodução, sim, mas que nos permite ter uma ideia de como era a Muralha na sua antiga glória.
Não vou mentir: gostei muito mais de Jiànkòu do que de Mùtiányù. Não que Mùtiányù não seja impressionante, porque o é. E muito. Se fosse apenas a esta secção, teria adorado e ficado emocionada na mesma. Mas Jiànkòu tem um encanto que só ela. Isso é inegável.
O dia já ia longo, e sentimos que estava na hora de voltarmos. Assim que vimos um local onde se podia descer, decidimos fazê-lo. Era altura de regressar a Pequim e descansar o corpo. A mente, essa, iria continuar a pensar nas maravilhas que tínhamos visto.
E agora, como voltamos a Pequim?
O entusiasmo de vermos a Grande Muralha da China era tanto que, ao planearmos a viagem, só nos tínhamos realmente preocupado com a ida. Então e a volta? Sabíamos que havia autocarros que passavam em Mùtiányù e que iam até Pequim. E eu tinha apontado o horário do último. Mas ele não apareceu.
Sem saber muito bem o que fazer, vimos uma senhora chinesa com dois estrangeiros, a falarem inglês. Fomos ter com ela, e perguntámos se nos davam boleia até Pequim. A senhora disse que tinha de falar primeiro com os seus clientes, porque aquela era uma visita muito exclusiva e tinham pago bastante pelos seus serviços.
Após uns momentos de conversação dentro do carro, do qual não podíamos ver o interior devido aos vidros fumados, a senhora disse que nos levava se estivéssemos dispostos a pagar. Iríamos dividir o preço com os clientes dela.
Pagámos 300¥ pela viagem (perto de 38€). Foi caro? Nem por isso. Temos de ter em conta que são cerca de 100 quilómetros. Os taxistas cobram em torno de 700-900¥ por uma viagem de ida e volta de Pequim a Mùtiányù, num carro normal, sem ar condicionado.
Nós fomos num carro topo de de gama, com bancos de cabedal, ar condicionado (que nos soube pela vida), e uma motorista que falava um inglês fluente e ia explicando factos interessantes pelos locais onde passávamos. Não podíamos pedir melhor.
Wow. Catarina, esta é uma daquelas coisas que não queria morrer sem fazer e, caramba, agora fizeste-me querer fazê-la pelo lado selvagem. Basta ver as tuas fotografias para ficar sem fôlego – que paisagem brutal. O ser humano é capaz de coisas maravilhosas, e quando se alia à natureza, melhor ainda! E que aventura 🙂
Jiji
É uma paisagem maravilhosa, sem dúvida! A natureza toda à volta, e depois essa belíssima construção… É incrível. Esta secção da Muralha não é para toda a gente, é necessário algum cuidado e exige um bocado de ti fisicamente. Mas é uma experiência fantástica, se estiveres disposta a isso. Eu voltaria a fazê-la desta forma 🙂
[…] extremamente irregular, e há vegetação um pouco por todo o lado. Foi isto que me atraiu. Fazer a caminhada de Jiànkòu até Mùtiányù foi das melhores experiências que alguma vez […]
Que surpresa achar esse relato tão bem explicado, Catarina! Sou do Brasil, e em setembro de 2018 (mês que vem) estou indo para a China com dois amigos. Planejamos acampar e dormir na Grande Muralha, justamente em alguma torre entre o ponto onde você subiu e a entrada em Mùtiányù! Nas suas andanças por lá, viu alguma Torre durante esse percurso que daria para acampar e passar uma noite dentro de uma barraca?
Parabéns pela viagem e pelo relato!
Olá Guilherme! As torres em Jiànkòu estão em muito mau estado de conservação, e muitas delas já nem sequer têm tecto. Do que me lembro, desde a torre onde entrei (que tinha tecto), até ao Chifre de Boi (Ox Horn), nenhuma tem condições para se dormir. No entanto, lá no topo do Chifre de Boi, há uma torre onde dá para acampar. A partir daí, as torres começam a ficar em melhor estado, mas essa parece-me a mais interessante para passar a noite. Uma boa aventura para vocês!