No dia 16 de Março de 2019, há mais de um ano atrás, escrevia o seguinte na minha (longa) lista de ideias para artigos: Lisboa e o negócio esclavagista. Era somente uma ideia embrionária, que surgiu depois de ter visitado os museus de Bristol, onde falavam sobre como a cidade prosperou à custa de muitos escravos africanos. Ainda não sabia bem o que queria escrever sobre o assunto. Tinha apenas a certeza de que gostaria de abordar um dos passados mais sombrios da minha cidade.
Lisboa sempre foi a minha cidade preferida. Continuo a percorrer o Mundo, a conhecer outras cidades, outros locais, para saber se há algum do qual goste mais do que de Lisboa. Até agora, ainda não encontrei. Há cidades que me roubaram um bocadinho do coração, como Praga, Budapeste, ou Roma. Mas nenhuma me fez apaixonar como Lisboa. E, quando se ama realmente alguém (ou alguma cidade), amamos “apesar de”. Seria fácil amar Lisboa “porque”.
Porque tem colinas que pintam e embelezam a paisagem. Porque tem uma luz tão característica e única, que nunca encontrei em mais nenhum lugar. Porque tem parques, jardins e recantos escondidos. Porque o espírito bairrista e a multiculturalidade se entrelaçam. Porque tem miradouros de cortar a respiração. Porque as suas ruas são animadas por eléctricos amarelos e azulejos de todas as cores. Porque o Tejo está sempre por perto, e cidades com rios são mais especiais. Porque, porque, porque…
No entanto, Lisboa também tem um passado, por vezes não tão glamoroso. Tal como na minha ideia embrionária, ainda quero escrever apenas sobre o papel de Lisboa no comércio atlântico de escravos. Embora partindo desse ponto, hoje os meus dedos levaram-se a escrever sobre alguns episódios que assombram o passado histórico da actual capital portuguesa. Episódios esses que me fazem amar a cidade “apesar de…”.
O massacre de judeus em 1506
Na Páscoa de 1506, os ânimos estavam exaltados devido a uma peste, que teria vindo de Roma a bordo das naus do arcebispo de Braga. Os fiéis terão visto um milagre junto à Igreja de São Domingos, que foi rapidamente desmentido por um incauto cristão-novo. A fúria popular fez-se sentir, e o homem terá sido espancado até à morte pela multidão.
Incitada pelos frades dominicanos, a população lisboeta começou um autêntico massacre. Durante três dias, foram mortas perto de 2000 pessoas, que se viram arrastadas das ruas e de suas casas, e queimadas em fogueiras. No Largo de São Domingos, vemos uma referência a estes dias.

O Tribunal da Santa Inquisição e os autos de fé
O papa estabeleceu a inquisição em Portugal em 1536, no reinado de D. João III. O Tribunal da Santa Inquisição instalou-se no Palácio dos Estaus, no Rossio. Hoje, é ali que se encontra o Teatro Nacional D. Maria II.
O primeiro auto de fé teve lugar em 1540. Decorriam em praças públicas da cidade, e eram extremamente frequentados. Se os prisioneiros continuassem a rejeitar a Igreja Católica, eram queimados vivos. No entanto, se mostrassem arrependimento e decidissem seguir o catolicismo, seriam absolvidos.

A escravatura e os mercados de escravos
A partir do século XVI, o Terreiro do Paço foi palco do desembarque de escravos vindos de África. As viagens tinham uma duração imprevisível, e as pessoas eram transportadas em condições desumanas. Ao chegar, eram distribuídas para venda pelos diversos mercados de escravos existentes na cidade.
Um dos mercados mais importantes ficava no antigo Largo do Pelourinho Velho. Os escravos eram divididos em lotes, e ficavam a aguardar serem comprados. A abolição da escravatura em todos os territórios portugueses, foi apenas definitivamente completada em 1869.

Haveria muitos mais episódios que podia referir. Deixo estes três, para reflectimos um pouco. Porque todas as cidades têm luz mas também têm sombra. A beleza está em conhecer os dois lados, e amar a cidade ainda assim.
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